Em Cem anos de solidão (1967), o escritor colombiano Gabriel García Márquez desfia para os leitores uma narrativa composta por inúmeros personagens. A família de que trata o livro, os Buendía, são descritos em cinco gerações, sendo necessária muita atenção do leitor para não se confundir em meio a tantos nomes. Embora tenha essa abundância de personagens, o romance é fluido e sedutor, um verdadeiro clássico da literatura latino-americana. Anos antes, em 1916, o irlandês James Joyce publicara Retrato do artista quando jovem, romance de formação que trata da infância e juventude de Stephen Dedalus. Apesar de ser uma obra que retrata muito bem questões sociais, políticas e culturais da Dublin do começo do século XX e de possuir vários personagens, passamos a maior parte do tempo dentro do espaço psicológico do protagonista, Stephen Dedalus. Na verdade, o romance é uma imensa investigação desse personagem durante seus anos de aprendizagem, até o desembocar na vida artística. Livro considerado revolucionário na investigação literária da mente de um personagem, a obra é também um clássico universal. Ambos os romances têm uma consideração pública bastante firmada, embora sejam completamente diferentes em seus métodos de composição. Uma diferença fundamental, e que gostaríamos de tratar aqui, é o trato com os personagens. Cem anos de solidão tem em Úrsula Iguarán como fio condutor, mas nenhum personagem é tão profundamente investigado, pois o referido texto não é um romance psicológico, embora algumas características psicológicas tenham sua vez; é mais uma história sobre uma família, um lugar e um tempo. Talvez Macondo, cidade imaginária que abriga a história, seja a grande personagem do romance. Aqui importa o desenrolar dos fatos e o correr dos anos, conduzindo os leitores à investigação da paisagem e da trama. No romance de Joyce, passamos a maior parte do tempo dentro da cabeça de Stephen, conhecendo seus pensamentos e sentimentos. Por meio da técnica do fluxo da consciência, o autor traça a estrutura psicológico do personagem, fazendo da narrativa uma viagem pela subjetividade do jovem artista. Os outros personagens têm sua importância na ação, pois vão disparar temas e pensamentos em Stephen, mas jamais serão investigados psicologicamente como o protagonista. Você que está em dúvida sobre como estruturar seu romance em relação aos personagens precisa entender que qualquer escolha deve ser feita previamente. Planejar é fundamental. De que trata seu romance? É um estudo de personagem? Fala de um lugar, primordialmente? O foco é sobre a ação ou sobre o mundo psíquico e sensorial dos personagens? Responder a essas questões é importante para definir o tratamento que se deve dar aos personagens. A priori, não há regras rígidas para essa operação: o mais importante é respeitar o planejamento feito e ter consciência das escolhas formais. Quando se escreve um romance muito longo, há espaço para muitos personagens e é possível desenvolver mais um de um deles psicologicamente, mas se você planeja um romance de tamanho médio ou pequeno, vai ser difícil dar densidade a número maior. Bons romances são aqueles que têm equilíbrio na condução da linguagem e do ritmo. Podem não ter densidade psicológica, mas possuir outro tipo de profundidade, como é o caso de Cem anos de solidão. Se você estiver mais propenso a desenvolver um romance de ação, com muitos personagens e rapidez na condução dos fatos, a dica é listar todos eles, traçar características (mesmo que nem todas eles fiquem explícitas no texto), definir a função de cada um na narrativa e o destino deles. Há personagens, como os figurantes, que vão terminar o romance da mesma forma como começaram, mas há os protagonistas e coprotagonistas, que podem se movimentar bastante ao longo do texto. Como eram no começo e como terminam? São perguntas que, se respondidas previamente pelo escritor, tendem a facilitar a escrita. Traçar a biografia dos personagens também nos parece uma boa estratégia, embora nem todos as partes de suas vidas possa aparecer no romance. Isso pode ser importante para não entrar em contradições ao longo do texto. É preciso anotar datas, fatos marcantes e analisar se a ação está coerente com os personagens (este personagem agiria dessa forma? Tomaria essa decisão?). O intuito deste texto é apontar que é importante se ter controle sobre o texto narrativo, domá-lo e mantê-lo na rédea curta. Planejamentos, anotações, organização de referências e storyboards podem ser úteis nessa imensa e hercúlea tarefa que é a construção de um bom romance.
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Joice NunesGraduada em Letras, revisora de textos e escritora. Estou sempre com um livro nas mãos, desde criança. Tenho a palavra escrita como algo fundamental em minha vida. Se isso não for amor, não sei o que mais poderia ser. :) Categorias
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Março 2018
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